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4 No útero frio do oceano
Muitos preferem patrulhar as fronteiras dos géneros do que explorar os baldios sem definição. Talvez por isso Bioshock tenha despertado entusiasmo e estranheza em igual medida. Fenómeno curioso, então, que foi um jogo com direito a discussões filosóficas sobre o livre arbítrio mas que quando chegava a hora de jogar, era sobre enfardar em mutantes com máscaras de coelho que andavam pelas paredes. Tudo porque Ken Levine suportou quase sozinho o peso de afirmar que Bioshock era “apenas” um first-person shooter enquanto todas as outras pessoas falavam de como era “mais” do que isso. Nada de novo no território lúdico, portanto: mais uma vez tínhamos em mãos um design de linhagem emergente (Thief, System Shock, Deus Ex) que escondia grandes questões por detrás da simplicidade das suas mecânicas de jogo e mais uma vez tínhamos um design de 19XX que se voltava a tornar popular em 20XX. Para uma certa elite de jogadores de PC, era alvo de escárnio; para as massas de jogadores de consolas, era um diamante mais brilhante do que os shooters cinzentos a que estavam habituados.
O que teve o seu toque de génio: apesar de tudo era sem dúvida uma maneira de dizer que System Shock, mais de uma década depois e com roupagens diferentes, ainda era um jogo capaz de nos cativar. Se neste mundo de consumo rápido o bestial de ontem é a besta de amanhã, e se a linhagem de certos jogos ou géneros perde algum do seu valor face ao enterro contínuo da nossa memória como se a história fosse uma doença, ali estava uma prova de que as coisas nem sempre têm de se reger por essa regra: ainda era (é) possível conciliar o passado e o presente. Longe da perfeição mas muito perto da ambição temperada, Bioshock era mais que prova de que um design pode ser intemporal enquanto há uma fagulha de savoir faire, e como tal, era também mais que prova do talento de Levine e da Irrational.
Talento esse que parece ausente em Bioshock 2.
Dito de outra maneira: Bioshock 2 é um melhor first-person shooter que o seu predecessor. Simplesmente não é um jogo tão bom.
Comments Off Contexto é Oscar Mike
“We will teach you the art of struggle
and the meaning of battle
and the lesson of peace”
- Samih Al-Qassem, “Atillu wa Asghu” (“Look Around and Pay Attention”)
Contexto.
Estou a jogar Modern Warfare 2. É uma história tradicional de soldados desconhecidos tornados heróis, vilões de última hora, uma guerra contada num vocabulário fragmentado não muito distante do terrorismo de consumo rápido criado pelos telejornais. É uma viagem alucinante, com uma composição musical que ruge ao longo dos níveis urgentes que fazem o seu melhor para esconder as raízes de corredor de Doom, esse avô enérgico de todo um género que se senta no alpendre a alardear a coragem e heroísmo dos anos que passou na guerra. “No meu tempo, não nos perguntávamos se podíamos falar com os monstros, disparávamos e pronto”.
Há momentos muito bem conseguidos. Um nível em particular tem um uso notável de direcção e iluminação: estamos impotentes, a correr através de uma série de telhados enquanto evadimos rajadas de tiros e a única coisa que nos guia – para além da voz premente do nosso superior – são luzes e sombras, que revelam apenas o essencial do caminho a seguir enquanto caiem sobre tijolos e telhados de metal. Outro nível transforma a escuridão e a chuva nos verdadeiros inimigos e a iluminação que emana de pequenos fogos em redor são mais importantes para a sobrevivência do jogador do que qualquer brinquedo tecnológico ao nosso dispor. Momentos como estes seriam arruinados nas mãos de estúdios menores e só poderiam ser bem executados por um punhado de outros, como a Valve.
Também ficamos com a sensação de que somos o filho ilegítimo de Bond e Bauer a brincar no quintal do Michael Bay e que é constantemente empurrado em direcção ao próximo objectivo condescendente, quer seja uma meta invisível ou um objecto que brilha algures no cenário. É Call of Duty decidido por comité, com a habitual correria à procura de RPGs para derrubar helicópteros mas agora com jargão tecnológico extra. Terrorismo vago, Médio Oriente vago, Europa de Leste vaga, motivos vagos. Há também um momento peculiar onde o lançamento de um míssil nuclear mais parece uma sequência Square-Enix, tal é a duração e o exagero. Personagens cuja personalidade nunca foi mais complexa do que conselhos em bolinhos da sorte desenvolvem um sentido de honra desconjuntado e disparam chavões por entre refrões de pornografia bélica. É puro ruído. Mostra um estúdio absolutamente confiante no que está a tentar fazer, sim, mas está mais interessado em ser ruidoso e furioso do que uma experiência coesa como o foi a prequela em 2007.
Mesmo assim – uma viagem alucinante.
Até aquela cena.