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14 São Apenas Videojogos, Certo?

ou, “Memórias de um velho preso no corpo de um trintão com músculos de uma rapariga de quinze anos”

Hoje faz um ano que este blogue começou. Tudo porque gosto de videojogos – mas, são apenas jogos.

Certo?

Sempre persegui sonhos. Enquanto na adolescência vi amigos perseguirem miúdas, carros rápidos ou bandas de rock que pudessem ser porta-vozes da sua alienação, perseguia fantasias prometidas por cartuchos, CDs, manuais de instruções. Conseguia viver com isso, até com a reputação de ser “aquele tipo que não se calava com os jogos”. Um dia consegui a proeza de falar sobre Bushido Blade durante dez minutos com amigos meus apenas para traçar uma comparação com o som que um deles fez ao engasgar-se com café e o estertor molhado que um personagem no título da LightWeight fazia ao ser trespassado mortalmente por uma espada. Findo o monólogo o silêncio revelou-se terrível, e tornou-se pior quando um deles perguntou “isso tudo só para comparares o som?!”. Muito aturaram com as minhas obsessões, mas não deixaram de ser meus amigos por isso. Ou de ser o mais amigáveis que conseguiam ser, pelo menos.

Onze anos mais tarde e estou a redescobrir alguns deles em redes sociais. Um deles, que se parece com Alan Moore mas que pinta algo mais próximo a Keith Haring, confessou ter jogado e gostado de Return to Castle Wolfenstein. Outra, uma rapariga-mulher pela qual senti uma infatuação terrível durante seis longos anos, parece estar viciada em The Sims e jogos sociais. Redescobrir outro, que fez da wanderlust um modo de vida, deixou-me destroçado. O tempo encarregou-se de lhe roubar meio coração e meia perna: no primeiro caso, figurativamente; no segundo, nem por isso. Uma das raras pessoas com quem partilhei a minha paixão por videojogos e que mais tarde, vim a descobrir, jogou EVE Online durante anos, embrenhando-se naquele espaço virtual, a manipular mercados, a fazer e desfazer corporações, a comandar frotas e o respeito de outros jogadores.

Ele, como os outros, nem sempre teve paciência para me ouvir falar de videojogos. Mas como os outros, também ele não resistiu aos mesmos. Terei influenciado algo? Terá sido mera curiosidade, um impulso, uma obsessão? Será que eles viram nos jogos mais do que headshots, mais do que laboratórios suburbanos, mais do que competições persistentes?

Ou será que não viram mais que isso?

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4 No útero frio do oceano


Muitos preferem patrulhar as fronteiras dos géneros do que explorar os baldios sem definição. Talvez por isso Bioshock tenha despertado entusiasmo e estranheza em igual medida. Fenómeno curioso, então, que foi um jogo com direito a discussões filosóficas sobre o livre arbítrio mas que quando chegava a hora de jogar, era sobre enfardar em mutantes com máscaras de coelho que andavam pelas paredes. Tudo porque Ken Levine suportou quase sozinho o peso de afirmar que Bioshock era “apenas” um first-person shooter enquanto todas as outras pessoas falavam de como era “mais” do que isso. Nada de novo no território lúdico, portanto: mais uma vez tínhamos em mãos um design de linhagem emergente (Thief, System Shock, Deus Ex) que escondia grandes questões por detrás da simplicidade das suas mecânicas de jogo e mais uma vez tínhamos um design de 19XX que se voltava a tornar popular em 20XX. Para uma certa elite de jogadores de PC, era alvo de escárnio; para as massas de jogadores de consolas, era um diamante mais brilhante do que os shooters cinzentos a que estavam habituados.

O que teve o seu toque de génio: apesar de tudo era sem dúvida uma maneira de dizer que System Shock, mais de uma década depois e com roupagens diferentes, ainda era um jogo capaz de nos cativar. Se neste mundo de consumo rápido o bestial de ontem é a besta de amanhã, e se a linhagem de certos jogos ou géneros perde algum do seu valor face ao enterro contínuo da nossa memória como se a história fosse uma doença, ali estava uma prova de que as coisas nem sempre têm de se reger por essa regra: ainda era (é) possível conciliar o passado e o presente. Longe da perfeição mas muito perto da ambição temperada, Bioshock era mais que prova de que um design pode ser intemporal enquanto há uma fagulha de savoir faire, e como tal, era também mais que prova do talento de Levine e da Irrational.

Talento esse que parece ausente em Bioshock 2.

Dito de outra maneira: Bioshock 2 é um melhor first-person shooter que o seu predecessor. Simplesmente não é um jogo tão bom.

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Comments Off Contexto é Oscar Mike

“We will teach you the art of struggle
and the meaning of battle
and the lesson of peace”

- Samih Al-Qassem, “Atillu wa Asghu” (“Look Around and Pay Attention”)

Contexto.

Estou a jogar Modern Warfare 2. É uma história tradicional de soldados desconhecidos tornados heróis, vilões de última hora, uma guerra contada num vocabulário fragmentado não muito distante do terrorismo de consumo rápido criado pelos telejornais. É uma viagem alucinante, com uma composição musical que ruge ao longo dos níveis urgentes que fazem o seu melhor para esconder as raízes de corredor de Doom, esse avô enérgico de todo um género que se senta no alpendre a alardear a coragem e heroísmo dos anos que passou na guerra. “No meu tempo, não nos perguntávamos se podíamos falar com os monstros, disparávamos e pronto”.

Há momentos muito bem conseguidos. Um nível em particular tem um uso notável de direcção e iluminação: estamos impotentes, a correr através de uma série de telhados enquanto evadimos rajadas de tiros e a única coisa que nos guia – para além da voz premente do nosso superior – são luzes e sombras, que revelam apenas o essencial do caminho a seguir enquanto caiem sobre tijolos e telhados de metal. Outro nível transforma a escuridão e a chuva nos verdadeiros inimigos e a iluminação que emana de pequenos fogos em redor são mais importantes para a sobrevivência do jogador do que qualquer brinquedo tecnológico ao nosso dispor. Momentos como estes seriam arruinados nas mãos de estúdios menores e só poderiam ser bem executados por um punhado de outros, como a Valve.

Também ficamos com a sensação de que somos o filho ilegítimo de Bond e Bauer a brincar no quintal do Michael Bay e que é constantemente empurrado em direcção ao próximo objectivo condescendente, quer seja uma meta invisível ou um objecto que brilha algures no cenário. É Call of Duty decidido por comité, com a habitual correria à procura de RPGs para derrubar helicópteros mas agora com jargão tecnológico extra. Terrorismo vago, Médio Oriente vago, Europa de Leste vaga, motivos vagos. Há também um momento peculiar onde o lançamento de um míssil nuclear mais parece uma sequência Square-Enix, tal é a duração e o exagero. Personagens cuja personalidade nunca foi mais complexa do que conselhos em bolinhos da sorte desenvolvem um sentido de honra desconjuntado e disparam chavões por entre refrões de pornografia bélica. É puro ruído. Mostra um estúdio absolutamente confiante no que está a tentar fazer, sim, mas está mais interessado em ser ruidoso e furioso do que uma experiência coesa como o foi a prequela em 2007.

Mesmo assim – uma viagem alucinante.

Até aquela cena.

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