Breves notas sobre os temas e apresentação de Phantasy Star Online (inclui spoilers)
A tristeza enevoada das Cavernas de Ragol dissipa-se por um momento quando encontramos arco-íris nos seus corredores inferiores. A presença de criaturas ferozes pouco subtrai ao momento; mesmo que atormentado pela doença no seu âmago, o planeta oferece vislumbres da sua maravilha e beleza, bem como outros elementos que, como este, pontuam e trazem significado às suas profundezas longas e minimalistas.
Phantasy Star Online foi a tentativa desesperada de Yuji Naka e da Sonic Team de provar a extensão e potencial do serviço online da Dreamcast a um mercado desacostumado a este tipo de jogos. Esta época também marcou o que muitos consideram como o período mais criativo da Sega antes de esta ter deixado a produção de consolas. O que é verdade, até certo ponto.
Por um lado, houve Jet Set Radio; se a indústria tivesse prestado atenção, Assassin’s Creed podia ter sido sobre espalhar zen urbano com a benção de Grandmaster Flash em vez de facadas nas costas de alguém. Por outro, houve Shenmue, talvez o primeiro equivalente a um “arrasa quarteirões” de Hollywood nos videojogos sobre marinheiros, cuidar de gatos e conduzir empilhadoras; se a indústria não tivesse prestado atenção, Heavy Rain poderia ter sido mais interactivo do que Space Ace. E depois houveram coisas para além do alcance, quer geográfico quer cultural, de jogadores ocidentais como SegaGaga, melhor descrito como um “mockumentary” da Sega, sobre a Sega.
O primeiro contacto com PSO era feito de futurismo, mas de um modo pouco vistoso. Tal com a série de 16-bits que o precedeu, os seus tons de fantasia científica eram desiguais. Apesar da Pioneer 2, o núcleo do jogo, parecer um microcosmo saído de Blade Runner, e de tecnologia avançada se infiltrar na sua apresentação e temas, era confortavelmente fantasia medieval, só que pintada a néon. Até tematicamente: engenharia genética e conspirações governamentais decorriam num mundo onde era possível destruir um deus com uma frigideira. Se isto parece pouco sofisticado, nada temam – também era possível usar um wok.
Porém, Ragol tinha detalhe esculpido nos seus polígonos. A Floresta que inaugurava o jogo é um exemplo tão bom como qualquer outro – idílica, desde os céus azuis e modestos acima aos riachos e tufos verdejantes. Mais além, profundezas cavernosas, minas industriais e ruínas imensas revelavam um esplendor próprio, com criaturas que nunca deixavam de surpreender. Lírios gargalhavam, alegres quando o seu cuspo venenoso atingia um alvo, amigo ou inimigo. Louva-a-deus gigantes guinchavam quando assassinados, com dezenas de versões iguais em miniatura fugiam do seu corpo. O uivo de lobos selvagens indicava a perda do líder da matilha, o que lhes diminuia a defesa e ataque. Gémeos siameses e grotescos irrompiam do chão, para depois se separarem e atacarem como dois indivíduos distintons; quando um morria, o outro parava e contemplava a sua outra metada com mágoa.
“Mágoa” poderá ser um termo impróprio neste caso. Mesmo com todas as suas cores, era um jogo de impacto discreto, mais implícito do que explícito. A Sonic Team conhecia as limitações da Dreamcast, assim como as suas, e nunca tentou transmitir muita emoção com a tecnologia ao seu dispor. Lançado apenas dois anos depois de Half-Life, PSO demonstrava, se não o mesmo entendimento, pelo menos os mesmos obstáculos que afligiram a Valve. O único equipamento visível nas personagens eram armas, e estas permaneciam bastante semelhantes entre si; apenas os jogadores sabiam se o que tinham em mãos era uma Autogun ou uma Lockgun. Um maior grau de personalização pode ter estado ausente do jogo, mas cada classe de personagem – Hunter, Ranger e Force – era reconhecível à vista, o que dava aos jogadores uma ideia clara de quem queriam no seu grupo. Isto também beneficiou o combate: muitos inimigos eram iguais entre si, com variações cromáticas a marcar a única diferença, mas como as cores estavam ligadas às suas fraquezas, o fluir da acção era mais rápido. Foi fácil lamentar a ausência de um modelo de combate por turnos em PSO, mas reduzir os encontros com a fauna enérgica de Ragol a meras escolhas num menu teria despido o combate de toda a atenção, adaptação e reações imediatas que exigia.
Mais de dez anos após o seu lançamento original, é mais fácil concordar com outros exemplos. Um deles, talvez a característica de PSO com um maior legado em termos de design, foi o seu sistema trans-linguístico, que conjugava o uso e criação de “emotes” para expressar intenção. Dado que muitos jogadores não tinham acesso a um teclado, o sistema permitia a pessoas de todo o mundo, independentemente de nacionalidade ou linguagem, comunicar através de uma linguagem unificada. Apesar de todas as vantagens de comunicação por voz na coordenação de jogos online (ver: Counter-Strike), podemos passar bem sem todos os comentários racistas e homofóbos de meninos de 12 anos (ver também: Xbox Live).
Embora as suas personagens fossem mudas, preferindo o texto em vez do som para sugerir personalidade, a banda sonora não tinha problemas em revelar-se. Também aqui era notável como a Sonic Team foi mais além para fazer de Ragol um lugar convidativo. Passar de uma apresentação bidimensional para uma totalmente em 3D tem as suas peculariadades; uma delas é que, dado que tanto a exploração como o combate podiam, e iriam, decorrer em simultâneo, já não eram necessárias múltiplas composições sonoras para o efeito. Devido a isso, cada área principal de PSO tinha duas faixas a correr ao mesmo tempo, uma tocada durante a exploração e outra activada quando o combate tinha início; quando todos os inimigos eram derrotados, a faixa anterior voltava a ganhar destaque. O resultado, mesmo que não isento de problemas, é que a música reflectia a jornada do jogador em vez de soar a algo predeterminado. Quando o contexto mudava – de introspectivo para suspeito, de ambiental para oppressivo, de luto para urgência – a música também o fazia.
No entanto, um dos elementos mais criticados de PSO foi a sua história; ou, nas palavras de muitos “phãns” (termo usado por fãs de Phantasy Star), a sua ausência. É uma queixa que não anda muito longe da verdade, mas que ignora em grande medida a construção e apresentação da sua personagem mais importante – a qual era, ao contrário do jogador, o herói principal.
Ou antes, heroína.
Red Ring Rico era uma cientista e Hunter, a trabalhar em Ragol quando o planeta é alvo de uma explosão que acaba por ser a “raison d’etre” da aventura. O jogo não faz nada, no início, para estabelecer a sua presença ou importância como era habitual em outros role-plays japoneses da época. Era apenas através de uma série de vinhetas pouco habituais que Rico era revelada. Em especial, a relutância de Principal Tyrell, e da sua assistente Irene, em pedir aos jogadores que descobrissem o seu paradeiro. Para além da investigação a Ragol após a explosão misteriosa, ambos pareciam ter algo mais em mente, mas isso só seria verbalizado mais tarde. Todavia, várias personagens a bordo da Pioneer 2 mencionavam Rico, reflectindo sobre como as pessoas procuravam inspiração nos seus actos heróicos.
Era apenas quando os jogadores viajavam ao longo de Ragol que a encontravam, mas nunca directamente. Não numa presença física, mas em várias gravações deixadas durante a jornada de Rico. Estas mensagens estabeleciam a sua identidade, esclareciam os eventos por detrás da explosão e o segredo mortal do planeta, e serviam como um tutorial contínuo e discreto, mas a sua função mais importante era a de gradualmente pedir algo muito pessoal ao jogador – que abandonasse a ideia de que ele seria o herói do jogo.
A maioria dos jogos não quer ser mais do que uma fantasia de poder. Isto é, convidam os jogadores a deixar as suas vidas e tornarem-se heróis, a resolver os problemas mais complexos, a salvar mundos. Os jogos de role-play não são diferentes, mesmo que sejam uma mentira (escapismo) construída em torno de outra mentira (a abstração dos números enquanto um medida de progresso). Rico funcionou como um “volte face” a essa ideia. Sem nenhum meio de expressão pessoal ou poder de decisão durante o decorrer da história, pelo menos para além de seguir o trilho de migalhas que ela deixara, os novos caminhos, dúvidas e verdades que emergiam de Ragol surgiam independentemente do jogador. Números aumentavam, equipamento chegava e partia, velhos inimigos davam lugar a novos, mas a única constante era que onde quer que os jogadores chegassem, Rico já lá tinha estado. A sensação não é muito diferente de um hack de Super Mario Bros., intitulado Super Luigi Bros., onde o seu autor apenas permite aos jogadores que joguem com Luigi – tradicionalmente, a personagem delegada para o segundo jogador no jogo de 8-bits da Nintendo – num mundo onde o primeiro jogador já tinha feito tudo. Em tudo, os jogadores eram protagonistas falsos: um red herring.
Rico também podia ser vista como uma personagem presa numa certa melancolia, numa relação dolorosa com o espaço à sua volta. Não apenas no sentido geográfico – a sua demanda levara-a através de locais cada vez mais labirínticos e mais afastados da civilização, é certo – mas também no psicológico. Um habitante da Pioneer 2 expressa o seu desejo de ter a coragem de Rico e como ela era uma heroína; no entando, em várias mensagens, ela questiona a percepção pública em seu redor, perguntando-se se deve “agir como uma cientista ou como uma Hunter”, e afirmando que não é uma heroína, apenas alguém numa posição única que lhe permitia corresponder aos anseios do povo. Isto não só é uma boa maneira de desconstruir o papel do herói nos videojogos, como também é exemplo de como um mundo virtual consegue sugerir uma ideia de vida: com humanidade.
A série Phantasy Star sempre teve tragédia em abundância, e os seus contos sempre foram construídos com base no sacrifício – mulheres, como Nei (Phantasy Star) e Alys (Phantasy Star IV), não só precederam Aeris de Final Fantasy VII, mas foram as principais agentes de mudança nos seus mundos respectivos. O derradeiro destino de Rico não foi diferente nem menos trágico, tornando-se no recipiente através do qual Dark Falz, uma manifestação milenar de maldade presente noutros capítulos da série, renasceu. Também aqui está outro argumento a favor de como PSO tratou os seus temas – não foi a personagem do jogador, tradicionalmente tratada como uma über entidade noutros jogos do género, quem Falz escolheu. Um dos registos deixados por Rico claramente afirma que “apenas o melhor animal é escolhido” – e foi ela, não a nossa personagem, não importa quantos números fossem usados para descrever o seu poder, que foi “honrada” com a distinção de se tornar o recipiente.
Além disso, Rico e Falz eram dois lados da mesma moeda. Cada um era retratado como possuíndo um desejo incomensurável de alcançar os seus objectivos, e nada os impediria de o fazer. Rico precisava do “poder” (respostas às suas perguntas) de Falz tanto quanto a entidade negra precisava do “poder” (um corpo que garantisse o seu renascimento) dela. É este conflito e dependência que, apesar de ignorados na altura, o colocavam acima de outros títulos. As suas mecânicas podem ter sido baseadas em Diablo, mas partilhava a mesma relação inquietante e simbiótica entre herói e antagonista expressa em jogos como System Shock 2, Bioshock e Portal – jogos que, tal como PSO, também eram feitos de impacto discreto, mais implícitos do que explícitos, inclusive na maneira como transmitiam as suas histórias aos jogadores.
Ainda hoje, há bastantes detalhes para descobrir e observar em PSO. Como a Sonic Team decidiu modelar os Section IDs – um termo que descrevia como cada personagem receberia um título que influenciava as chances de receber itens raros – a partir das cores do arco-íris, ou como o alfabeto estranho aparecia regularmente ao longo do mundo, o que aguçava o mistério em torno de Ragol. Mas o tempo não lhe foi muito favorável. Conceptualmente infinito enquanto jogo online, mecânicamente nado-morto enquanto RPG, PSO foi eventualmente comprometido pela tendência da Sonic Team em lançar projectos inacabados. O jogo viria a receber várias revisões e melhorias visuais ao longo dos anos, permanecendo um eterno trabalho em progresso.
Phantasy Star Online v.2 foi exemplo disso. Enquanto a sua estrutura permaneceu virtualmente intocada, foi o novo modo de dificuldade, chamado Ultimate, que pode ser considerado a quebra mais radical com o original, pelo menos em termos de apresentação. Em Ultimate, Ragol tornou-se num pesadelo comparado com a versão anterior. Os céus azuis da Floresta foram substituídos por um pôr-do-sol outonal e enevoado, enquanto as Cavernas perderam algum do seu mistério húmido para se tornarem catacumbas infectadas. A tecnologia estranha, se bem que demasiado colorida, das Minas foi retrabalhada como uma série de corredores enegrecidos e pintados com linhas verdes, polidas e doentias, criando uma sensação de mundo virtual corrompido como em Tron. Os lírios traiçoeiros das Cavernas tornaram-se atiradores mortíferos, capazes de matar qualquer azarado que se encontrasse no seu campo de visão, enquanto os tubarões humanóides foram trocados por toupeiras enormes, a cor excessiva das suas garras a deixar claro a sua agressividade, para mencionar apenas algumas das mudanças.
Infelizmente, apesar da Sega não ter capitalizado o conceito ao máximo, o mesmo já não pode ser dito do nome. Phantasy Star Universe tornou-se num espectáculo vazio e sem charme, aparentemente criado para agradar a contabilistas que acreditam que uma folha de cálculo em Excel tem que falar sobre “sentimentos” ao ritmo de música pop japonesa e com diálogo tão ensaido e polido até perder virtualmente todo o seu significado. Porém, a semente de PSO não foi esquecida, e a sua influência viria a ser mais visível na série Monster Hunter da Capcom, que olhou para o jogo da Sega e fez o mais sensato, despindo-o de convenções abusadas (e abusivas), criando um espaço virtual muito mais maleável e admirável.
Uma década depois, há melhores jogos de role-play, até mesmo jogos online mais conhecidos. Mas, como Phantasy Star Online, não há nenhum.