2 Isto Não é um Manifesto do Novo Glitch

Notas sobre horror involuntário, histórias de assombrações, erros vs. intenção

(O artigo que se segue contém spoilers sobre Silent Hill 2 e Eternal Darkness)

Aqui está uma história de terror se quiserem acreditar nela.

O cenário é a versão de 1999 de Alien vs. Predator da Rebellion, ao longo dos corredores do nível Derelict enquanto Alien. Este é considerado um nível de bónus, apenas desbloqueado depois de jogar vários níveis na campanha singleplayer.

Depois de comprar o jogo não conseguia parar de jogar durante horas, dias, meses. Não desistia até cronometrar níveis com o Alien a alta velocidade, a aprender os caminhos e movimentos ideais para cada cenário. Percorrer aqueles corredores e paredes a 360 graus era uma emoção que Descent nunca conseguiu suscitar e passava dias a jogar como um xenomorfo, a provocar Marines e civis enquanto desbloqueava opções como dentadas à distância, o equivalente a ser um atirador furtivo Alien.

No entanto, a provocação tornou-se num castigo. Lembro-me de um dia passado a jogar continuamente durante horas e o meu computador a zumbir como um Sopwith prestes a rebentar. Mas estava a divertir-me demais a tratar os humanos como marionetas, a esconder-me nas sombras, a encenar guerras relâmpago contra os Marines e depois fugir; conseguia ouvir os gritos deles a ecoar pelos corredores enquanto fugia para evitar o fogo das suas armas. A dada altura, algo aconteceu. Os Marines começaram a gritar e a fugir mais vezes.

E faziam isto mesmo quando estava a milhas de distância.

Um “wtf?” juvenil passou pela minha cabeça e decidi investigar, não deixando de parte tácticas de intimidação e refeições ocasionais. Recordo claramente ver algo que não tinha presenciado até então: um Marine a largar a sua arma de fogo e a fugir. Aquele “wtf?” estava agora em letras maiúsculas. Outros soldados mostravam mais garra, a correr ao meu encontro e a disparar à queima-roupa. Um rodopio da minha cauda negra e algumas refeições vorazes depois decidi perseguir o Marine que escapou. Por esta altura tudo à minha volta era puro caos, com os Marines em lamentos dolorosos, a gritar, a implorar por misericórdia, a disparar contra tudo e nada. Empoleirado numa geometria grotesca dos anos 1990, não conseguia perceber o que se passava. Subitamente, ao longe, vi aquele que escapou, as suas mãos sobre a cabeça como um refém a correr pela vida num jogo Ghost Recon. Persegui-o por todo o mapa durante vários minutos, até que o perdi, e depois voltei a encontrá-lo – agachado perto de uma porta. Esgueirei-me até ele, rastejando silenciosamente. Quando estava perto o suficiente soltei o botão de agacho, erguendo-me como se estivesse a reencenar as criaturas nos filmes. A tremer, a respirar fundo, ele vira-se lentamente para mim e grita.

O jogo encravou mas o grito continuou.

E continuou.

E continuou.

E continuou até eu reiniciar o computador.

Hoje em dia a sua geometria pode ser simples, as expressões faciais dos Marines podem ser rídiculas, mas aquele medo quando confrontado com o inesperado foi bastante poderoso. Mal voltei a tocar no jogo desde então e não conheço ninguém que alguma vez tenha encontrado o mesmo erro; tentativas posteriores de repetir a situação foram um fracasso. O horror não intencional foi magnífico e em certa medida, muito mais assustador do que tudo o que jogo tinha para oferecer. E isto apenas podia acontecer num jogo – onde somos mais susceptíveis a acreditar em fantasmas na máquina. No blogue Five Players, Rich McCormick falou de como as histórias de terror estão a emergir a partir de videojogos, a substituir contos à volta da fogueira por perversões das memórias de infância que temos de jogos, e como partilhamos isso online. Em alguns casos tratam-se de glitches, encenados de modo a captivar a audiência.

O que pode o erro (o “glitch”) fazer pelos videojogos, além de benefício pessoal para quebrar um jogo? Considerando o glitch de AvP, e se aquilo fosse intencional, para mostrar um tipo diferente de causa e efeito, de potencial narrativo? E se a ideia tivesse sido aplicada conscientemente a outros jogos? Seriam necessários narradores e designers exímios para transformar a intenção num erro. Afinal de contas, se não é espontâneo e imprevisível deixa de ser um glitch – apenas uma função pré-determinada à espera de ser activada. É o efeito secundário, e não a intenção, que fazem dele um glitch. Mas poderá o design de videojogos aprender algo com o glitch?

O horror não intencional

Estão familiarizados com isto, certamente: sons estranhos vindos de uma sala mal iluminada, a luz de um poste na rua a dar de si quando passamos por ele enquanto todas as outras continuam a funcionar, uma estrada subitamente invadida por nevoeiro e o rádio a oferecer estática com vozes distorcidas. Estas coisas são assustadoras? Talvez tenham passado tempo demais a ouvir mitos urbanos contados à volta de uma fogueira e agora não se deixam impressionar. Ou talvez sintam alguma espécie de medo que vos leva a perguntar se a realidade que conhecem não está a ser manipulada.

No entanto, o que é o medo? A indústria dos videojogos, sempre ansiosa por colocar géneros em caixas e conquistar mais fatias de mercado, criou jogos de “horror” enraízados em fobias como aranhas gigantes ou vírus globais, ou reduziu o macabro a postais de entretenimento com excursões típicas a esgotos, casas assombradas e minas. O problema principal com a maior parte destes jogos é que funcionam por imitação de outros meios, e tratam o medo como uma atração de feira da qual nos esquecemos quando saímos dela. Paredes que sangram, a maçaneta que gira, uma abominação a perseguir-nos por um corredor – regra geral estes elementos falham porque estão divorciados do contexto que os torna assustadores.

O zombie que lentamente vira a sua cabeça em direcção aos jogadores no primeiro Resident Evil foi escolhido por muitos como um dos momentos mais assustadores nos videojogos. Um zombie é uma reinvestigação de um medo primitivo – das criaturas mais lentas da Capcom até aos devoradores de cérebros ágeis em 28 Days Later, o conceito base é o de algo que ridiculariza a vida tanto no contexto religioso (a ausência de um descanso final) e social (o nosso dia a dia reduzido a uma rotina sem nexo). Quando o conceito funciona, funciona porque sentimos repulsa perante a ideia de existirmos nesse estado. Quando não funciona, é porque não somos levados a imaginar isso. O choque e espanto provocados pelo zombie de RE não foi causado pela presença do zombie mas, discutivelmente, por estarmos perante a primeira vez que um estúdio tentava recriar a criatura através de uma maior fidelidade gráfica. Mesmo que tenha sido o primeiro vislumbre da criatura para alguém, o resto do jogo era passado a cortar, disparar, queimar e decapitar as hordas: o desconhecido subitamente tornou-se demasiado fácil, demasiado confortável para ser memorável ou assustador.

Entretanto o Pyramid head, o carrasco implacável e sem rosto que perseguia James Sunderland, o protagonista de Silent Hill 2, é visto como um dos melhores vilões dos videojogos. Esta noção tem um problema: o verdadeiro vilão do título de horror da Konami era James. De regresso à cidade de Silent Hill, a perseguir um MacGuffin na forma de uma carta escrita pela sua esposa falecida, Mary, James é perseguido por remorsos, inseguranças e culpa. Os jogadores são levados a crer que a sua mulher morreu devido a uma doença mas perto do final da viagem, descobrimos que a personagem que esteve sob o nosso controlo durante horas a fio foi o responsável pela sua morte. Tal como o seu predecessor Silent Hill 2 explora o tema de uma cidade que serve de limbo bíblico, o qual aprisiona pessoas e as força a confrontar os seus medos. Mas é apenas durante aquele momento no hotel perto do lago, ao ver uma cassete de vídeo que revela a sua esposa a morrer, que percebemos que James foi o seu assassino.

Ao contrário do zombie que nunca leva o jogador a pensar nele como algo para além de um simples veículo para a nossa violência, a revelação dos actos de James são profundamente perturbadores. Porquê? Porque acreditámos no sofrimento de James, ou porque tomámos a personagem como nossa? Talvez porque passámos horas a acreditar que estávamos a desempenhar o papel da vítima e não do agressor? Eis o que eu penso:

O horror precisa de intimidade para funcionar.

Os videojogos constroem limites e pedem aos jogadores que os entendam, que os conheçam intimamente. O que Silent Hill 2 fez foi criar um limite, um território e depois deteriorar o que conhecíamos dele, forçando assim a reavaliar toda a experiência, e esse efeito nas regras do espaço virtual tornou-se desconfortável e um agente poderoso de medo. Mas para além de reviravoltas narrativas, efeitos visuais ou os sustos habituais, há outro modo a partir do qual os videojogos podem provocar esta impressão nos jogadores: com o glitch.

Erro ou intenção?

É claro que outros meios fizeram o melhor que puderam para retratar uma sensação de medo e pânico. No cinema, isto é alcançado através de vários métodos, entre os quais o uso da câmara que sugere estar a mostrar a perspectiva de uma manifestação de perigo – uma vítima vista pelos olhos de um assassino em série, a força sobrenatural que trabalha na sombra e manipula as coisas, o cenário que atormenta alguém em níveis visuais e metafóricos. Apesar de estas e outras técnicas funcionarem, nem todos os meios conseguem afastar as audiências da sua zona de conforto; filmes como The Prestige e Inception passam muito tempo a explicar à audiência o que estão a ver, limitando assim a expectativa ou desconforto (que ambos os filmes tenham sido dirigidos por Christopher Nolan pode ou não ser uma coincidência).

Quando funcionam, temos algo como Twin Peaks. No primeiro episódio, o agente Cooper pergunta a um médico que o deixe sozinho para que possa analisar o corpo de Laura Palmer. O actor não percebeu a frase e em vez de sair da cena disse o seu nome, “Jim”. Depois de uma pausa desajeitada e o mesmo pedido feito de novo, o actor pede desculpa e sai de cena. O director David Lynch achou que o momento foi tão surreal que o manteve intacto. Isto foi subtil e fantástico: deixou a audiência a perguntar-se o que tinha acabado de acontecer. Aqui estava o que parecia ser uma história tradicional, um cenário tradicional, uma cena e diálogos tradicionais. De repente, uma pequena alteração nessas expectativas fez com que as pessoas repensassem o que estavam a ver. De certo modo, foi o equivalente a um glitch: o sistema não executou a sua função devidamente mas corrigiu-se a si próprio, e continuou a funcionar como esperado.

O termo “jogabilidade emergente” tem sido usado para descrever jogos onde, ao explorar sistemas de regras e as suas possibilidades, é possível fazer coisas que os designers e programadores nunca imaginaram ser possíveis. Os glitches são semelhantes e podem-se manifestar em qualquer jogo, mas comportam-se de maneiras diferentes. Um exemplo de jogabilidade emergente seria Super Metroid, onde aprender a sequência das bombas usadas enquanto estamos na forma de Morph Ball permite aos jogadores saltar com o impacto das explosões e alcançar sítios normalmente considerados impossíveis, ou além das suas habilidades correntes (exemplo: alcançar uma plataforma com explosões de bombas em vez de regressar mais tarde com as Hi-Jump Boots). Um exemplo de um glitch seria Street Fighter 2, onde era possível interromper animações ao executar outros ataques, gerando assim combinações de ataques – eventualmente a Capcom corrigiu o problema e passou a fazer destes combos opções válidas nas regras. A propósito, foi assim que o “género” dos jogos de luta nasceu: ao entender o potencial do glitch no sistema.


Eternal Darkness: Sanity’s Requiem
incluía um medidor de sanidade que reflectia a noção que uma personagem tinha da realidade. Paredes que sangravam, entrar numa sala e dar por si no tecto em vez de no chão ou efeitos sonoros tais como o choro de crianças testavam a coragem da personagem, e poderiam conduzi-la a um estado lastimável. Apesar de engenhosos perdiam o efeito surpresa ao longo do tempo – a maior parte deles era dirigida à personagem, que reagia independentemente dos desejos do jogador, e muitos eram reversíveis. Era nos momentos em que o jogo agia como se os controladores tivessem sido desligados ou quando simulava que alguém tinha baixado o volume do televisor que os jogadores se sentiam perturbados, porque dava a entender que era a própria experiência do jogador que estava a ser manipulada. Não era simplesmente uma questão de perder o progresso num qualquer “save” mas uma questão de como se entendia o progresso em si enquanto se jogava. No entanto, estes efeitos foram construídos de modo a simular um glitch mas eram intencionais.

E se um videojogo fizesse dos gliches uma parte integrante da experiência – constantemente a introduzir logros nos seus limites e a desenvolvê-loas até consequências inesperadas, mas sem nunca revelar isso aos jogadores? Construído para causar glitches, por assim dizer?

Porquê o glitch?

Nós já temos guias e listas detalhadas de glitches, que examinam meticulosamente as suas especificidades, que sugerem como enganar jogos para nosso proveito. Já estamos confortáveis com o glitch para lhe dar uso fora do âmbito dos videojogos, como é o caso da glitch art: a transformação de erros digitais numa nova forma estética, fazendo da informação mal comunicada uma nova forma de comunicação. Será viável reinterpretar o glitch como uma nova (mesmo que não intencional) forma de comunicação nos jogos em si? Aqui estão alguns exemplos interessantes:

*Joguem Fallout 3 durante algum tempo inevitavelmente vão confrontar Super Mutants e Pitt Raiders. Quando mortos, uma extravagância no sistema de física pode fazer com que os corpos deles fiquem no ar, congelados ou com os seus membros terrivelmente esticados ou distorcidos.

E se um jogo apresentasse inimigos cujos padrões de comportamento tivessem o mesmo efeito? Aqui estão glitches semelhantes em F.E.A.R. 2: Project Origin e Left 4 Dead:

Num jogo como Fallout 3 os modelos retorcidos podem ser vistos como um simples glitch. No entanto, em títulos como F.E.A.R. 2 e L4D, com claros elementos de horror, o que constitui terror e uma falha no sistema? Na literatura e no cinema somos confrontados com objectos que se movem da mesma maneira, com os mortos que não permanecem mortos, com uma noção pura e insolúvel do inesperado. Poderão estes eventos, noutro contexto nada mais do que motivos de risota, ser vistos como algo sério o suficiente para que se tornem parte de uma experiência mais profundas – quer em jogos de terror ou não? O que acontece quando o glitch, como acontece nestes casos, é mais forte do que a intenção?

*Se restaurarem um “save” de Heroes of Might and Magic V depois de aplicarem o patch 1.1, o jogo pode apresentar texto corrompido. Isto quer dizer que todo o jogo arrisca a tornar-se impenetrável, todo o conjunto do seu texto agora inescrutável. E se isto não fosse um glitch? Olhemos para a Blood Language de Legacy of Kain (uma linguagem fictícia), a versão japonesa de White Knight Chronicles (uma linguagem verdadeira) e o problema técnico de Heroes V (uma linguagem ilegível), respectivamente.

Todas estas linguagens – real, falsa, proveniente de um erro – têm uma lógica interna consistente mas em termos práticos todas representam um desafio para o jogador: um sistema que pode ou não estar de acordo com o conhecimento do jogador, uma barreira à espera de ser ultrapassada. “Desvendar” a língua Japonesa consiste em aprender os seus padrões e símbolos até que possa ser traduzida para algo compreensível. O mesmo é aplicável à linguagem fictícia de Nosgoth. Qual é a diferença em relação ao texto corrompido? Na prática, nenhuma.

Se a ideia do que é um glitch não tivesse sido implantada na nossa consciência, o que pensaríamos ao olhar para ele? Julgaríamos estar perante um mero erro ou uma expressão válida do sistema?

*Outros glitches documentados – e o modo como são filtrados pelos jogadores – incluiem:

1) Um cartucho danificado de The Legend of Zelda pode apresentar gráficos reduzidos até ao seu nível mais básico, quase a simular os visuais de jogos Atari 2600:

Entretanto, um truque em Super Mario RPG permite temporariamente aos jogadores mudar Mario para a sua versão de 8-bits.

Apenas a segunda situação é bem aceite, mas ambas oferecem um regresso aos primordios dos videojogos.

2) Uma Wii pode produzir glitches gráficos em Resident Evil 4.

Entretanto, o último nível de Castlevania Bloodlines tem um efeito de distorção visual criado para confundir os jogadores (a partir de 0:32).

Apenas o segundo é bem recebido, no entanto ambas as situações são um modo de alterar a percepção que um jogador tem do jogo.

3) Compare-se o pathfinding de Soldner onde se encontram tanques cujos condutores não fazem nenhum esforço para se desviarem de obstáculos, e o de Gloria, uma personagem de Where Time Stood Still, que se recusa a abandonar o cadáver do seu marido após este ser morto por um pterodáctilo.

Ambos são exemplos de pathfinding que provocam uma reacção não intencional na audiência. O tema “sério” e militarista de Soldner é desfeito por uma sucessão de eventos cómicos e surreais. Nas palavras de John Walker, “é um jogo terrível cujos bugs são os únicos elementos que o salvam – é performance art, comédia improvisada, programação terrível. Terá sempre um sítio no meu coração e espaço no meu disco rígido”. Contra a intenção dos autores, o seu valor cómico é maior do que muitos jogos que tentam ser humorísticos. Por outro lado, o pathfinding de Where Time Stood Still dá aos jogadores uma leitura acidental sobre as suas personagens – emoção, outrora expressa apenas no discurso, podia agora ser inferida a partir da teimosia de uma das personagens em não se mexer. Como Kieron Gillen nota, “Agora, enquanto adulto, tenho noção de que podia ser apenas o fantasma na máquina. O pathfinding nunca foi bom nas suas melhores alturas, e pode ter simplesmente ficado confuso. Mas isso não interessava – aquela angústia que correu pelo meu corpo, aquele reconhecimento de humanidade inesperada no comportamento de um sprite é o tipo de coisa que ajudou a moldar a minha crença no potencial dos jogos”.

O que é necessário para que o glitch possa ser comparado a um design consciente? Recentemente, dois jogos mostraram-me como isto pode acontecer.

*Rom Check Fail é uma amálgama de jogos e mecânicas, com raízes tanto no familiar como na estranheza. É imediatamente reconhecível graças às suas recriações de Super Mario Bros., The Legend of Zelda e Gauntlet, entre outros, e completamente embebido na história do glitch: não apenas porque muitos jogadores tiveram o seu primeiro contacto com o glitch através da NES, os visuais simplistas subitamente transformados em paisagens caóticas e fragmentadas, mas porque desconstrói e recontextualiza o glitch como uma mecânica de jogo pura em vez de uma inconveniência ou um problema. Num momento estamos a jogar como um Link de 8-bits, que pode atacar e movimentar-se em quatro direcções, a lutar contra Goombas, os quais sofrem o efeito da gravidade e repetem os seus movimentos quando chocam contra um obstáculo tal como acontecia nos jogs antigos de Mario; no outro somos a nave de Space Invaders, com o seu movimento limitado ao eixo horizontal, a tentar destruir os fantasmas de Gauntlet, os quais se movem em todas as direcções. Estas transições, que nascem a partir de pequenos erros visuais e sonoros, actualizam constantemente a linguagem própria do jogo e redefinem as suas fronteiras. A nossa experiência está constantemente a ser manipulada, mesmo quando as mecânicas tenham uma lógica interna.

Se não soubessemos que o jogo funcionava assim, veríamos isto como glitches ou mecânicas?

*Dwarf Fortress é um videojogo no seu melhor; o facto de não ser jogado por mais pessoas só ilustra como os jogadores actuais se tornaram prisioneiros de tutoriais condescendentes, gráficos de alta definição e mecânicas “eu também sou como os outros jogos” (apesar de apostar que alguns, como eu, não o jogam por medo de nunca mais o conseguir largar). É uma pequena grande maravilha, com centenas de regras e factores a colaborar em maneiras imprevisíveis – o mundo está em evolução constante, a erosão do solo é simulada, personagens morrem de fome se não lhes prestarmos atenção, há sistemas próprios para a gravidade e fluídos. Coisas como inundações acidentais, crescimento anormal de populações felinas a ocupar toda uma fortaleza, anões a enlouquecer e a matar todos à sua volta são apenas a ponta do icebergue (podem ver histórias ilustradas de duas sessões de jogo, Bronzemurdered e Oil Furnace, por Tim Denee; sim, tudo aquilo pode acontecer no jogo).

Neste caso a linguagem e limites do jogo são sempre consistentes, mas as mecânicas estão constatemente a produzir resultados tão singulares que, ao primeiro contacto, são tão inesperados e imprevisíveis quanto um glitch. Para os principantes, qualquer consequência pode ser vista como um fantasma na máquina, como algo que não está certo.

Se não soubessemos que o jogo funcionava assim, veríamos isto como mecânicas ou glitches?

Vamos pensar de novo em Silent Hill, em particular sobre alguns dos elementos comuns a toda a série: os movimentos espasmódicos das enfermeiras, as mudanças entre a realidade e o mundo oculto (Otherworld), os sons inexplicáveis em algumas áreas. Notavelmente, todos eles partilham semelhanças com alguns dos glitches mais comuns nos videojogos – animações fora de sequência, transições entre áreas que nos levam para o lugar errado ou apresentam texturas erradas, e reprodução irregular de sons.

Se não soubessemos que o jogo funcionava assim, veríamos isto como glitches ou como os elementos que definem Silent Hill?

Isto não é um Manifesto do Novo Glitch

Os glitches são tradicionalmente vistos – por vezes com razão – como algo que impede o nosso progresso nos videojogos. Portas que não se abrem, personagens que não falam, texto danificado e “saves” perdidos para sempre são exemplos de quando as coisas correm mal. Mas a ameaça de um mundo a ser arruinado quanto mais o exploramos, deixando-nos vulneráveis à sua maré implacável de incerteza e corrupção, é muito mais fascinante do que um mundo sempre ansioso por nos lembrar de que estamos em segurança, o seu design receoso de nos apresentar o fracasso sem uma maneira de o reverter, o seu espaço virtual relutante demais para cortar as cordas da nossa rede de segurança. Apesar de alguns jogos e autores serem claramente imaginativos, é possível que o potencial do meio para nos desafiar e estimular a imaginação se torne mais forte quando os fantasmas na máquina se revoltam contra as suas funções pré-determinadas?

Paisagens surreais, um desafio às leis da física, feitos de força impossíveis e o verdadeiro horror têm sido prometidos em campanhas de marketing e elementos impressos no verso de caixas, mas a maior parte dos jogos contemporâneos ainda se coíbem de alcançar tudo isso. Quando um glitch se manifesta de modo a que ofereça essas coisas, não damos importância. É uma resposta natural após anos e anos a sermos expostos ao glitch, após documentarmos erros e descuidos de programação. Infelizmente, passámos a gozar com os seus efeitos ou a usá-los como portal para recompensas pessoais – uma meta actividade da qual apenas retiramos pontos de experiência ou dinheiro virtual ilimitado, entre outras – em vez de olhar para eles como um lembrete de que os videojogos de hoje em dia, as experiências cada vez mais saneadas e menos arriscadas, podiam aprender com uma altura em que os designers e programadores não estavam sempre lá para nos auxiliar; que a criatividade e empenho deles era encontrado na vontade de nos surpreender e não necessariamente na segurança do código.

Em 1975, Brian Eno e o pintor Peter Schmidt criaram Oblique Strategies, um conjunto de postais com mais de cem “dilemas que valem a pena” para serem interpretados como ideias aleatórias e usados em momentos de indecisão criativa. Entre os postais, os quais vão agora na quinta edição, estava a seguinte sugestão:

“Honrem o vosso erro como uma intenção escondida”.

Será possível olhar para o glitch da mesma maneira?

2 Responses to Isto Não é um Manifesto do Novo Glitch

  1. diogoribeiro says:

    Ora bem-vindo :D

    Sim, o Arkham Asylum tem esse segmento fantástico – passou-me completamente ao lado quando escrevi isto, mas até o mencionei na minha crítica ao jogo, aqui no blogue. Amnesia ainda não voltei a tocar nele, espero conseguir dar-lhe mais atenção em breve :/

  2. Berto says:

    Li tudo, gostei, parabéns, etc.

    Um jogo recente que usou o glitch (embora tecnicamente não o fosse) foi o Batman: Arkham Aylum durante o ultimo pesadelo do Scarecrow. Embora não tenha sido criado para o medo, conseguiu criar duvida e confus…ão no jogador e foi uma forma de quebrar a 4ª parede.

    Outro caso interessante é um dos efeitos da insanidade no Amnesia (que vem no seguimento do que falaste no Eternal Darkness). Há um quadro em particular que é repetido ao longo jogo. O jogador fica tão acostumado àquele quadro em especial que quando a certo ponto é atacado por altos níveis de insanidade começa a notar que aquele quadro em especial mudou para formas grotescas.

    A diferença em relação ao Eternal Darkness é que aqui é feito de forma subtil, quase às escondidas. Quando o jogador repara nem se apercebe se era suposto ou não o quadro mudar. Fica instalada a duvida que ajuda a criar a ideia que “algo está errado”